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Artigo: A miragem do calote


Data: 16 de novembro de 2010
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por André Siqueira

As informações mais recentes do Banco Central (BC) sobre crédito colocaram na berlinda o ciclo atual de expansão dos empréstimos. De acordo com o último Relatório de Inflação, publicado em 22 de outubro, os brasileiros gastam mais que os americanos, por mês, para pagar suas dívidas – um dado assustador, dada a fama de grandes gastadores destes últimos. Por aqui, segundo o BC, prestações, juros e encargos abocanham quase um quarto dos salários, enquanto nos Estados Unidos as despesas financeiras consomem 17,2% da renda das famílias. Outro sinal alarmante, ao menos para a turma do copo meio vazio, seria a alta constante do endividamento (calculado sobre a renda anual) nos últimos quatro anos, hoje em 39,1%.

Coube ao próprio BC adicionar alguma água à fervura, quatro dias depois, ao divulgar a taxa de inadimplência em setembro, que chegou ao nível mais baixo da história (4,7%). Os juros também permaneceram em queda, numa trajetória que nem o ciclo de aperto da política monetária – com a elevação da taxa Selic de 8,75% para 10,75% ao ano entre -março– -e junho últimos – foi capaz de abalar.

As dúvidas que ainda poderiam existir quanto à viabilidade da expansão das carteiras de crédito começam a se esvair na medida em que os bancos divulgam os resultados referentes ao terceiro trimestre. O Itaú registrou, na quarta-feira 3, o maior lucro de uma instituição financeira no País, de 3,03 bilhões de reais de julho a setembro. O recorde anterior havia sido anunciado apenas uma semana antes pelo Bradesco (2,53 bilhões de reais). A operação brasileira do Santander representou um ganho de 1,93 bilhão de reais para o grupo espanhol, uma alta de 31,4% ante o mesmo trimestre de 2009.

A explicação das instituições para o aumento das margens é praticamente a mesma: ampliação da carteira de crédito e redução da reserva feita para compensar eventuais calotes – a chamada provisão para devedores duvidosos. Os bancos médios mostram resultados positivos por razões semelhantes. O BMG, focado em empréstimos consignados, lucrou 147 milhões de reais, alta de 20,6% em relação ao terceiro trimestre do ano passado.

“Os bancos têm administrado muito bem a expansão do crédito. Conseguiram ampliar e melhorar a qualidade dos financiamentos”, afirma Celso Grisi, professor de economia da USP e diretor do Instituto de Pesquisas Fractal, especializado em estudos e cenários para instituições financeiras. “Tudo o que os bancos precisam fazer é monitorar a renda do brasileiro e a inflação, que são os dois fatores capazes de influenciar a demanda por crédito e a capacidade de pagamento.”

O professor lembra que as taxas médias cobradas pelas instituições caíram, em boa parte, por conta do aumento da concorrência dos bancos públicos – na esteira das políticas anticíclicas adotadas pelo governo em 2009, em resposta à crise financeira internacional – e pelo maior volume de crédito em modalidades menos arriscadas, como o financiamento de veículos, imóveis e o empréstimo consignado.

As taxas dos empréstimos, de acordo com Grisi, continuam elevadas para os novos clientes, oriundos da nova classe C. A queda média seria explicada pelas melhores condições obtidas pelos clientes de renda mais elevada e com bom histórico. “A população passou a recorrer mais aos financiamentos, e isso não é privilégio de nenhuma classe específica, porque todas elas registraram aumento de renda.”

O especialista diz que os crescimentos da economia e da massa de renda (salários, aposentadorias e pensões) são os principais fatores a sustentar a expansão do crédito, ao lado da queda das taxas e do alongamento dos prazos. A maior capacidade de contrair dívidas, por sua vez, explica o descolamento entre a curva de elevação do endividamento e a do comprometimento da remuneração mensal (gráfico à pág. anterior). Ou seja, nos últimos anos o brasileiro tem conseguido contrair débitos maiores sem, necessariamente, ter de abrir mão de uma parcela maior de seus ganhos.

Em que pese a trajetória positiva dos últimos anos, a oferta de crédito no -Brasil continua sensivelmente inferior à da maioria dos países desenvolvidos e de boa parte do mundo emergente, onde os índices invariavelmente superam 100%. Em relação ao tamanho da economia, os empréstimos atingiram 46,7% em setembro. No mesmo mês de 2009, a relação entre dívida e PIB estava em 43,9%. Nos Estados Unidos, por exemplo, a relação chega a 187%.

Embora usem uma parte proporcionalmente menor do salário mensal para pagar dívidas, na comparação com os brasileiros, os americanos são mais endividados. Naquele país, o crédito equivalente a 128% da massa salarial da nação, ante 39,1% por aqui.

De acordo com a assessoria de imprensa do BC, “a distância (entre o comprometimento de renda dos brasileiros e o dos americanos) justifica-se pela diferença de taxa de juros e de horizonte temporal das operações de crédito entre os países”. Em outras palavras, o trabalhador americano assume dívidas muito maiores, mas, como paga taxas menores e estende os pagamentos por prazos mais longos, arca com parcelas mensais proporcionalmente inferiores às assumidas pelos brasileiros.

O economista sênior da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Jayme Alves, vê razões adicionais, de ordem metodológica, para as discrepâncias entre os índices brasileiro e americano. A principal delas diz respeito ao cheque especial – ao lado do cartão de crédito, a modalidade mais cara oferecida pelos bancos nacionais. Nos EUA, a cobrança de quem utiliza recursos superiores aos disponíveis na conta é registrada como tarifa e, portanto, não é levada em conta nos índices de endividamento financeiro. Nos cálculos da Febraban, sem o cheque especial o comprometimento de renda do brasileiro cairia de 23,8% para 20%.

“O cheque especial e o rotativo do cartão são linhas a ser usadas por poucos dias, em ocasiões extraordinárias”, explica Alves. “Essas duas modalidades acabam por influenciar significativamente no cálculo de comprometimento de renda quando seu custo financeiro é projetado por todo o mês. É preciso verificar se nossos dados são realmente comparáveis aos americanos.”

As transformações recentes do setor de crédito brasileiro levam o professor de Economia da USP Antônio Borges Matias a olhar com reserva os dados do BC. “Há uma regra que proíbe os bancos brasileiros de emprestar ao correntista se as parcelas representarem mais de 30% do salário. Para termos uma média de 24% de comprometimento de renda, é preciso que muita gente esteja acima desse limite”, diz.

Segundo Matias, a expansão do volume de operações de crédito é importante não só pelo impulso ao consumo e ao crescimento econômico, mas pelo fato de permitir a redução das taxas exigidas dos clientes. “Nosso sistema financeiro trabalha de uma forma invertida em relação ao mundo desenvolvido. Aqui os bancos operam com volumes baixos e spread (diferença entre o quanto os bancos pagam para captar o dinheiro e o quanto cobram por ele) bastante elevado. Lá fora, as concessões são muito maiores e, por isso, as taxas podem ser mais baixas”, explica.

Para comprovar essa tese, o professor cita a relação entre o lucro e o patrimônio líquidos no setor bancário brasileiro, na ordem de 10% em 2009 e em torno de 15% neste ano. “Não é uma rentabilidade absurda, nem desalinhada aos níveis internacionais.”

Na quinta-feira 28, o presidente do BC, Henrique Meirelles, disse, após um evento em São Paulo, que continua a tomar medidas para impedir que se forme no Brasil a “mais perigosa das bolhas, a de crédito”. Segundo Matias, o uso de instrumentos como a elevação dos empréstimos compulsórios – baixados durante a crise internacional – seria viável, mas novas elevações na Selic podem ter efeito contrário ao desejado. “O juro elevado aumenta o gasto do governo e atrai mais capital para o País, o que pode prejudicar o crescimento e valorizar ainda mais o câmbio, sem frear a elevação do crédito”, ressalta.

Outro objetivo do BC, conter a valorização do real, também pode exigir uma contração na oferta de empréstimos, na avaliação de Grisi. “Elevar a cotação do dólar é encarecer os produtos importados, o que põe em risco o controle da inflação”, avalia. Nesse caso, o professor recomenda um “gerenciamento seletivo do crédito ao consumo”, de forma a reduzir a demanda. “É possível limitar a oferta das linhas mais caras, com regras mais duras para o uso do cheque especial e do cartão de crédito, ou reduzir os prazos para consórcios de automóveis”, sugere. “Não são ajustes fáceis, mas certamente são menos danosos para a economia do que um aumento dos juros.”


André Siqueira é subeditor de Economia de CartaCapital.

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